Livre de discursar sobre a laicidade do Estado Brasileiro, a corrupção que aparentemente existe no meio Judiciário do país, e outros temas tão polêmicos quanto de vasta análise, as trinta e quatro crônicas de Entre Salas e Celas, da Editora Autonomia Literária, permitem-se mergulhar de cabeça no componente humano para qual o sistema criou todo o seu aparato jurídico. Ao representar, dentro de um tribunal, e com todas as suas figuras típicas, seus clichês de interrogatórios e suas suspeitas, a ordem social que deve ser mantida e respeitada, o juiz Marcelo Semer expõe um caráter confidencial em relatos de uma vida inteira de profissão, e que denotam o quanto o mundo das leis é impulsionado não apenas pela razão, como pela emoção, e, muitas vezes, até mesmo, pelo peso do acaso.
De audiência em audiência, o leitor é convidado a adentrar no mundo da criminalidade urbana brasileira além dos becos, das favelas, do Congresso Nacional, mas num cenário onde a última palavra é sempre dita por quem é sempre impactado pelos milhares de casos que já julgou. Assim como um professor que lembra boa parte dos nomes de seus alunos, um Excelentíssimo não é incólume a isso – em absoluto. Ao relembrar os seus vinte anos de profissão nas varas criminais de São Paulo, Semer explora com curiosidade algumas situações que passou, outras com mais carinho, ou com um pesar que verte das páginas. Sua profissão jamais poderia ser a mais feliz, e certamente é uma das mais desafiantes, intelectual e emocionalmente, num país cujos inúmeros problemas fazem ferver o banco dos réus.
Até porque, na complexidade da vida humana, os fatores se misturam e as circunstâncias de um determinado caso, triviais por excelência, podem ser bastante dramáticas diante da figura emblemática, e intimidante para alguns, de um “doutor” capaz de decidir solenemente a vida de um(a) cidadã(o) qualquer. Os relatos não poderiam ser mais espirituosos, honestos e reféns, claro, da realidade brasileira de indivíduos que, ou se envolvem com ações criminais, ou são envolvidos até prestarem depoimento e serem imprevisíveis no choro, no riso, no suor ou no grito quando submetidos ao crivo definitivo, libertador ou não, da balança implacável. Como esquecer, portanto, o choro de uma mãe no tribunal, ou o condenado que reconhece seus crimes, e aprova, intenso, sua própria prisão?
São coisas assim, inesquecíveis, que a memória sensível de um magistrado, mesmo experiente, não apaga – e não consegue, então, guardar só para si mesmo. No país de Rafael Braga, e Aécio Neves, dois pesos nem sempre são duas medidas. Talvez o grande árbitro, humano acima de tudo, e sempre cercado de advogados, testemunhas e promotores, se inspire então nos ideais de honestidade de boa parte dos seus julgados ao confessar, numa das melhores crônicas do livro, que os três P’s (Pretos, Pobres e Prostitutas) são de fato os clientes preferenciais da justiça penal no Brasil. Negar isso seria negar o óbvio, tendo nisso uma honrosa oportunidade, perdida pelo livro, em criticar o sistema e os seus meandros mais íntimos. Uma pena.